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Coluna de Rodrigo "Japa" Santos: Precisamos falar da saúde mental de quem nos alimenta

  • Foto do escritor: Jornal Mauá Hoje
    Jornal Mauá Hoje
  • há 6 dias
  • 4 min de leitura
Imagem: Reprodução/Hawlet
Imagem: Reprodução/Hawlet

Hoje vou começar meu artigo contando a história de um grande amigo meu, um dos maiores cozinheiros que já tive o privilégio de conhecer.


Dindin é africano e veio para o Brasil em busca de oportunidades. Morava em um quarto de pensão que dividia com um amigo. Acordava todo dia às 6 horas da manhã e entrava em seu primeiro emprego às 7h. Nesse restaurante, ele tocava o almoço até as 16h. Saía correndo e entrava em outro restaurante às 17h, onde ficava até a meia-noite. Corria para casa, tomava banho, dormia e começava tudo outra vez no dia seguinte. Tinha folga um dia por semana e raramente conseguia que ela coincidisse nos dois empregos. Nos seus dias de folga, ele dormia. Era só o que conseguia fazer.


Foto: Reprodução/Serious Plug
Foto: Reprodução/Serious Plug

A vida de Dindin valia entre R$ 5.000 e R$ 6.000. Desse dinheiro, ele pagava o aluguel de onde morava e mandava todo o restante para a família. Trabalhava, no mínimo, 88 horas por semana. Um escravo moderno, como a maioria de nós.


Vivemos juntos por cinco anos. Quando digo vivemos, é porque realmente passamos muito do nosso tempo juntos — nove, dez horas por dia. Mais tempo do que eu passava com qualquer outra pessoa. Dividimos muito da nossa vida. Quantas vezes o vi triste, principalmente pela distância da família, ou exausto, com o corpo pedindo uma pausa, um descanso. Além de tudo isso ele ainda tinha que lidar com o preconceito, tão presente na nossa sociedade embora muitos se esforcem em negar sua existência. Mas ele sempre tentava tirar isso da mente se dedicando ao trabalho. Às vezes eu brigava com ele para que parasse e descansasse. Virava as costas e ele pegava alguma produção para fazer. “Escondido do papai, senão ele briga”, dizia ele para o restante da equipe.


Foto: Reprodução/IGA
Foto: Reprodução/IGA

A história de Dindin ajuda a entender por que o setor de alimentação e hospedagem está sempre atrelado a altas incidências de depressão, uso de drogas e suicídio. Embora não tenhamos dados específicos sobre o tema no Brasil, pesquisas globais mostram números preocupantes. A R;pple, uma organização de prevenção ao suicídio no Reino Unido, realizou uma pesquisa em 2024 que apontou que 59% dos trabalhadores do setor enfrentam dificuldades relacionadas à saúde mental. Metade deles admitiu ter pensamentos suicidas. Sessenta e seis por cento atribuíam seus problemas de saúde mental às exigências do trabalho. Uma pesquisa realizada nos EUA detectou que 77% dos trabalhadores do setor têm propensão ao alcoolismo, enquanto 19% fazem uso frequente de outros entorpecentes.


O que faz a profissão de cozinheiro ser tão insalubre? Alguns dos motivos são:


Foto: Reprodução/IGA
Foto: Reprodução/IGA

Baixa remuneração: a maioria das empresas não paga salários atrativos, o que faz com que os trabalhadores não enxerguem no setor uma carreira próspera.


Cargas horárias extensas: dobras, extras, eventos... sempre há um motivo para o patrão pedir que o cozinheiro fique um pouco mais. Isso quando não somos obrigados a ter dois empregos para conseguir uma renda digna.


Maus-tratos: xingamentos, agressões, ameaças, violência psicológica. Dentro de uma cozinha, essas coisas são normalizadas e romantizadas. E fica muito mais difícil se você for mulher, negro ou LGBT.


O comportamento do consumidor: um estudo realizado pelo Understanding America apontou que houve um declínio em extroversão, abertura, amabilidade e conscientização entre as pessoas após a pandemia de Covid-19. Uma pesquisa da Pew Research Center identificou que 47% dos adultos americanos admitem que o comportamento das pessoas está mais rude e intolerante após a pandemia. Nosso setor trabalha com a emoção das pessoas. Pessoas com menos senso de coletividade tendem a ser rudes e arrogantes e o setor de serviços é um dos que paga o preço dessa mudança comportamental.


Baixa capacitação dos empregadores: quem nunca trabalhou com aquele dono de restaurante que tinha dinheiro e um “sonho”, mas que não entende absolutamente nada de como funciona a operação e ainda acha que sabe tudo?


Foto: Reprodução/IGA
Foto: Reprodução/IGA

Falta de capacitação dos profissionais: o setor conta com muita gente sem formação, muitos que nem sabem ler e escrever corretamente ou que não conseguem interpretar um texto. Estão ali, muitas vezes, porque foi o único caminho que encontraram para levar sustento à família. Em contrapartida, os salários pagos não são suficientes para que os que desejam estudar possam fazer isso. A qualidade dos cursos de formação é outro problema, que trataremos em outro artigo.


Há mais de duas décadas o Brasil discute a regulamentação da profissão de cozinheiro, que trataria da valorização profissional, padronização de processos e direitos e deveres dos trabalhadores. Mas, por pressão dos empresários e de entidades patronais, a regulamentação nunca aconteceu.


Dindin hoje está em Portugal, brilhando nas cozinhas de lá. Nos falamos menos, mas continuo amando meu amigo incondicionalmente. Quando a gente estava triste, quando não suportava mais, sempre tivemos um ao outro. Isso nos ajudava a aliviar as dores do dia a dia.


Para quem precisa de apoio, o Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece atendimento gratuito e sigiloso pelo telefone 188, chat e e-mail, 24 horas por dia. Procure ajuda!


Rodrigo "Japa"  Santos
Rodrigo "Japa" Santos
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